Rio / Casos de Polícia
Jovens simulam confrontos nas ruas com armas de gel; situação preocupa autoridades da área de segurança
Conhecidas como “gel blasters”, as armas de brinquedo são importadas da China e vendidas em sites e lojas a preços que variam de R$ 290 a R$ 750
Por
Atualizado
há 31 minutos
Armas de Gel Elétrica. Loja dentro do Mercadão de Madureira vendendo — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
A moda, que se alastra pelo país, chegou com força no Rio. Inspira-se nos jogos de combate do universo do videogame, como Call of Duty e Fortnite, mas é bem real. Nas ruas de verdade, jovens simulam confrontos usando armas que disparam balas de gel. Vestem-se para a batalha, com roupas de tons escuros, e andam em grupo, a pé e em motos, como se assiste em vídeos que circulam pela internet, gravados em locais como o Complexo da Maré, na Zona Norte, e Vila Kennedy, na Zona Oeste. A movimentação dessas turmas atrai a curiosidade de muitas crianças. As armas, conhecidas como “gel blasters”, importadas da China e vendidas como brinquedos em sites e lojas a preços que variam de R$ 290 a R$ 750, são, a princípio, inofensivas — seus projéteis causam apenas dor leve ou pequenos hematomas. Mesmo assim, seu uso indiscriminado, sem hora nem lugar definidos, causa apreensão.
Reproduzir vídeo
Título: Jovens aderem a “brincadeira com arma de gel” no Rio
Subtítulo: Extra
Tela cheia
Jovens aderem a “brincadeira com arma de gel” no Rio
— As armas coloridas ficam fáceis de qualquer profissional de segurança pública ver que é um brinquedo. Mas outras, que são muito próximas de um simulacro, isso pode confundir. E, obviamente, pelo menos nas imagens que a gente tem visto, não é só arma. Eles se caracterizam como criminosos. Isso é um risco para eles. Porque uma viatura da Polícia Militar, por exemplo, pode ver um grupo desses brincando e entender de outra maneira. Isso pode pôr em risco essas pessoas — afirma o secretário de Segurança do Rio, Victor Santos. — A compra dessas armas não é proibida, mas a forma de utilização é que pode ser perigosa. Pode colocar em risco a vida desses jovens.
‘podem causar dano’
Delegada e deputada estadual, Martha Rocha integra a Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa. Na Casa, ela foi autora da lei que reconhece o paintball e o airsoft — que usam armas de pressão — como modalidades esportivas, regulamentando sua prática. A parlamentar também se preocupa com a disseminação das “gel blasters” sem a devida fiscalização.
— Essas armas podem causar dano para quem as está usando sem equipamento de proteção. Vêm de fora, não passam por controle, podemos está lidando com uma questão de contrabando. Isso deve ser investigado. O que também me deixa muito preocupada é que a polícia pode abordar esses jovens na rua, partindo do pressuposto de que eles estejam portando um fuzil. Essa moda ainda está incitando o uso de armas e o comportamento de violência. A segurança pública tem que ter olhar mais atento para o que está acontecendo — alerta a parlamentar.
O cientista político André Rodrigues, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e Violência (Lepov), da UFF, observa que é importante não criminalizar os jovens adeptos dessa nova onda. Para o especialista, a discussão deve girar em torno da fiscalização do comércio de armas de fogo, simulacros e armas de brinquedo.
— Os jovens periféricos já passam por um processo de estigmatização. Era comum, por exemplo, a comercialização de armas de espoleta, que usavam pólvora e eram vendidas como brinquedo, e isso foi proibido. O caminho é a fiscalização e o controle de quem está vendendo essas armas. Esse debate deve ser feito de maneira mais profunda no Legislativo. Se é um objeto que imita uma arma letal, seja ele um brinquedo, deveria ter uma regulação para o público infantil e adolescente — explica André Rodrigues.
No último dia 21, no Rock in Rio, pelo menos duas atrações do show “Para sempre trap”, MC Cabelinho e MC Veigh, subiram ao palco carregando armas de gel. No Instagram, a dupla também postou foto com os brinquedos, acompanhada da legenda “bala vai comer no palco”.
Essas armas estão à venda em grandes polos de comércio popular do Rio. Na Saara, no Centro, réplicas são oferecidas ao ar livre e em lojas, como “o brinquedo do momento”. Não é difícil encontrar variações do produto, inclusive acessórios, como a munição de gel e óculos de proteção. A metralhadora automática de gel M4-16 é a mais procurada. Tem versão colorida, mas também modelos de cor preta e camuflagem militar. A arma de design realista é apresentada pela vendedora como o “brinquedo ideal para o Dia das Crianças”. Um comerciante com loja na Rua Buenos Aires afirmou que seu estoque foi vendido em uma semana, e que só terá reposição do produto, vindo de um fornecedor de São Paulo, no dia 10 de outubro. Em Madureira, espalhou-se a notícia de que o tráfico na região teria proibido a venda de “gel blasters” pelos camelôs, mas as armas de gel aparecem expostas em estabelecimentos dentro do Mercadão.
O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) informou que uma portaria publicada pelo órgão em 2021 não considera esses produtos brinquedos. “O Inmetro também define requisitos específicos para armas de brinquedo. Réplicas de armas com projéteis de bolas de gel são semelhantes a equipamentos como airsoft e paintball, regulamentados pelo Decreto 11.615, de 21 de julho de 2023, o qual não está sob a competência do Inmetro”, informa o instituto, por nota.
Sociólogo e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Eduardo Ribeiro associa a febre das armas de gel à possibilidade de criação de comportamentos violentos.
— Se atiram um projétil que pode causar dano, não são brinquedos. Os projéteis de gel não machucam, mas os vídeos incentivam a machucar, ainda que na brincadeira. Até então, o que se vinha acompanhando era um processo que parecia briga de galera, com grupos marcando confrontos na rua, lembrando torcidas organizadas — explica o especialista. — Isso tem potencial para produzir desordem pública. É um tipo de diversão que faz um apelo às armas como uma espécie de videogame da vida real.
Na internet, é possível encontrar dicas para tornar a munição “mais resistente”, congelando as bolas de gel, por exemplo.
Aumento nas vendas
O e-commerce brasileiro registrou aumento de 2.145% do faturamento em brinquedos de gel, principalmente armas que disparam esse tipo de produto, no mês de setembro, em comparação com a média mensal de 2024 (janeiro a agosto). Os dados são da Neotrust, empresa de soluções de inteligência para o e-commerce. Especificamente no Estado do Rio, o faturamento em armas de gel cresceu este mês 13,8 vezes, em comparação com a média mensal até agosto.
Em nota, a Polícia Civil informou que atua em colaboração com o Setor de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, que regula a importação e a utilização de tais produtos. A corporação ressalta que aguarda a publicação pelo Exército da normativa que estabelecerá as regras sobre esse tipo de equipamento. “Qualquer artefato que se assemelhe a uma arma de fogo e não tenha a ponta laranja ou vermelha, capaz de diferenciá-lo de uma arma real, poderá ser apreendido como simulacro de arma de fogo”.
A simples posse de um simulacro de arma de fogo não é crime.